terça-feira, 23 de novembro de 2010

Todo Mundo e Ninguém


O trecho abaixo é parte de uma peça maior, chamada AUTO DA LUSITÂNIA (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), representada pela primeira vez em 1532. A obra é de autoria do criador do teatro português, Gil Vicente.

Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar, porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.

Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência: Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que ninguém busca consciência. e todo o mundo dinheiro.

Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.

Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado, e ninguém ser repreendido.

Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte.

Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve que todo o mundo quer paraíso
e ninguém paga o que deve.

Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que todo o mundo é mentiroso, E ninguém diz a verdade.

Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro, e ninguém desenganado.

6 comentários:

  1. Olá, fiquei muito feliz com a sua visita e recadinho! Realmente as músicas dos anos 60, as clássicas são lindíssimas, sou apaixonada por suas letras e melodias..... tão diferentes das de hoje em dia!!!! Gostaria de parabenizá-lo pelo BLOG que é fantástico! Adoro Gil Vicente .... tão sabido das coisas.... Um abraço!

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  2. Maravilhoso!
    A decadência moral renascentista chega ao auge em nossa época.
    Adorei!

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  3. Jorge, legal ver minha caçulinha aí, agradecendo. Também lhe agradeço por ter visitado o blog dela e ela veio me contar toda feliz. Obrigada pela visita no Alfa e no Alquimia. Essa postagem de Gil Vicente, merece maior atenção e introspecção de minha parte, mas estou sem tempo. Precisaria saboreá-la mais, ler com a alma e com pressa, não funciono. Abração!

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  4. Raíssa Rezende, agradeço o generoso comentário, também gostei do seu blog. O processo revolucionário caminha sempre mais em direção à crise e ao caos. Assim a cada dia que passa as músicas, a arte e todas as coisas tendem a piorar cada vez mais. Isso não significa que possa em nossos dias surgir uma boa arte. Sim ela pode surgir, mas tanto mais será bela quanto mais contrariar a tendência revolucionária e se aproximar da verdadeira arte. Entende-se por revolução ou tendencia revolucionária a crise que teve início no fim da Idade Média e culmina com nossos dias. Esse processo revolucionário será objeto de oportuna postagem. Obrigado.

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  5. Anacoreta, meu grande amigo. Com toda a razão voce comentou sobre o Renascimento. O que é renascimento? Renascimento é re-nascer, ou seja, nascer de novo. Então o que renasceu no fim da Idade Média? O paganismo dos povos pagãos. Isso foi o renascimento. É o que se observa nas artes e na cultura renascentista. Tanto que a escravidão que era combatida pelo cristianismo na Idade Média, voltou a ser moda depois no renascimento (No Brasil, por exemplo). O Barroco veio como resposta ao Renascimento. Enquanto o Barroco florescia nas lindíssimas músicas de Vivaldi (na Itália católica) o Renascimento insistia em Amsterdã (Holanda protestante). Foi um longo periodo de disputa que de certa forma enriqueceu o genero musical. Obrigado pelo comentário.

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  6. Maria Luiza, eu tambem fiquei surpreso e contente por ela vir comentar meu blog e além do mais estar seguindo. Eu tambem estou seguindo o Blog dela. Uma das maiores riquezas que o ser humano pode acumular é a amizade. A amizade é um tesouro inestimável. No ambiente de nossos dias, onde tudo é descartável, trazer consigo as tradições familiares, as amizades duradouras, as verdades de sempre é uma coisa muito boa. Assim dessa forma, fico muito contente quando conheço alguma pessoa e com ela faço amizade. Ainda mais sabendo que é filha de tão generosa amiga, fico mais honrado ainda. Agradeço a amizade e peço que Nossa Senhora, lhe dê muitas e muitas graças e bençãos.

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